PARADOXOS DA TOLERÂNCIA


PARADOXOS DA TOLERÂNCIA


GUIMARÃES, Jefferson Pontes. RU: 2502000
UNINTER - Polo: PAB Cabo Frio - RJ


Resumo:

A tolerância é uma expressão ambivalente que apresenta paradoxos quando enfrenta a intolerância, dentre os quais destacam-se dois aspectos. Primeiro, a regra moral de resposta é a tolerância, todavia, por vezes isso não ocorre. Em alguns casos, para atender os mesmos padrões de moralidade a intolerância é exigida como resposta aos comportamentos inadequados, sob pena de ser desvirtuado a própria razão de ser da tolerância. No campo político temos um segundo paradoxo que se revela quando o Estado, tolerantemente, deve proteger as liberdades individuais, mas para isso precisa combater os abusos com intolerância. Tratam-se de paradoxos que requerem uma análise aprofundada, pois desvirtuam a regra de respeito às liberdades individuais, o que será feito a partir das obras de Voltaire e Rawls. O primeiro autor, confirmando a regra e utilizando um pano de fundo histórico, demonstrará o quanto ruim é a intolerância. E Rawls, o segundo, utilizando sua teoria política, contribuirá para revelar os critérios que devem reger as ações de (in)tolerância.
Palavras-chave: Tolerância. Paradoxo. Voltaire. Rawls.



INTRODUÇÃO

A expressão “tolerância”, abordada em qualquer dicionário, tem o sentido de “suportar”, “aceitar”. Decorre do latim tolerantĭa, que traz em si a “constância em sofrer”. Trata-se de uma expressão muito em pauta em nossa sociedade nacional, pois, talvez, estamos vivendo no Brasil um dos momentos históricos em que os debates relativos à (in)tolerância estejam mais em voga. Não que haja momentos em que o tema também possa ser ainda mais fortemente visualizado. Contudo, dada a amplitude informativa das mídias sociais, temos a impressão que o assunto tem sido discutido como nunca antes, impulsionado, sobretudo, pelos lastimáveis episódios de homofobia e de feminicídio, corriqueiramente relatados nos noticiários, e pelas acirradas e violentas discussões político-ideológicas tão presentes nas redes sociais.
Com este escopo, o presente artigo pretende, ainda que de forma muito breve, tratar sobre o tema da tolerância, especificamente abordando dois aspectos de um aparente paradoxo. O primeiro pode ser visualizado num exemplo. É fácil concordar que ser tolerante significa, por exemplo, respeitar a opinião politica do outro, reconhecendo e protegendo sua liberdade de expressão. Todavia, haveria um limite à tolerância? Seria legítimo, em dados casos, agir com intolerância? Os paradoxos residem justamente nessa ambivalência da expressão, quando é possível verificar que nem sempre ser tolerante (no sentido concreto) significa que somos de fato tolerantes (sob o ponto de vista moral). Portanto, talvez haja situações nas quais a intolerância, em determinado modo de ver, é bem-vinda, o que, obviamente, deve ser visto com bastante cautela, pois, como dito, a regra é a tolerância.
Estudaremos o tema sob dois enfoques. Primeiro, a partir das contribuições de Voltaire, filósofo iluminista francês do século XVIII, veremos que a razão prática confirma os males que a intolerância pode causar. E, por fim, com o pensamento político de John Rawls, pensador estadunidense do século XX, seguiremos com os critérios possíveis de mensurar os limites e o lugar da intolerância em uma sociedade em posição original.

DESENVOLVIMENTO

Como já destacamos, há majoritário consenso de que existe um dever moral de tolerar (suportar) a opinião e o comportamento geral do outro. Trata-se de uma pressuposto lógico e recíproco para que haja respeito aos direitos alheios. O reconhecimento do meu direito está diretamente relacionado ao respeito que atribuo ao direito do outro. É dizer, em outros termos, que o meu direito depende da medida em que tolero o exercício do direito pelo outro.
Entretanto, no sentido contrário, parece que também há consenso de que nem todos os comportamentos devem ser tolerados. É imoral, por exemplo, tolerar um comportamento abusivo ou ofensivo sem qualquer respaldo que o legitime. Podemos ou devemos, em tese, suportar a opinião alheia, porém o mesmo não ocorre quanto ao dever de suportar agressões verbais. Existe, então, um limite à tolerância, a partir do qual parece tornar legítima a intolerância. Ser tolerante à liberdade de expressão encontra limite na intolerância, pois, do contrário, a tolerância à intolerância seria uma forma tolerante de cumplicidade à intolerância.
Para aprofundarmos um pouco neste tema, inicialmente, destaca-se aquela que seria a obra mais clássica, “O Tratado sobre a Tolerância”, escrito por Voltaire em 1763, cujo pano de fundo estava nos conflitos entre os católicos e protestantes franceses. Então, o foco da obra é a tolerância religiosa, sem prejuízo da possível ampliação de seus princípios para as diversas realidades afetas ao tema. Embora seja um texto estrito há mais de duzentos anos, veremos que ainda podemos retirar dele alguns preciosos e atuais conceitos.
Forte no espírito iluminista, Voltaire defendia que os comportamentos motivados por intolerância à religião eram como uma doença na sociedade e que deveriam ser submetidos à razão. Então, a partir desse viés racionalista, o filósofo argumenta que a segurança dos interesses particulares, inclusive, econômicos, depende de uma convivência pacífica, fundada na tolerância. Para tanto, no lugar de fazer uso de concepções abstratas, tão comuns em tratados desse tipo, Voltaire utiliza dados históricos de conflitos e como foram resolvidos. Ou seja, o método utilizado pelo autor prioriza o empirismo racionalista, embrionário naquele momento.
Neste sentido racional pragmático, o livro inicia narrando a história de Jean Calas, protestante que foi acusado pelos católicos por ter supostamente cometido filicídio, motivado por intolerância ao catolicismo confessado pelo filho. Já condenado e na masmorra, foi comprovada a injustiça da decisão, pois o filho, na verdade, havia cometido suicídio por conta do acumulo de dívidas de jogos. Então, a condenação foi anulada, levando Voltaire a afirmar que “a razão tem mais poder em Paris do que o fanatismo, por maior que este possa ser” (2008, p. 11). O caso retrata, dupla intolerância, seja na precipitada acusação dos católicos ou no forte moralismo protestante que teria contribuído para o suicídio.
Voltaire entendia, com certo pessimismo, que a discordância era uma característica inerente ao ser humano, de modo que seria impossível viver em paz senão tolerando as diferenças. Neste sentido, o pensador francês incentivava o pluralismo, pois “quanto mais seitas houver, menos cada uma delas será perigosa; a multiplicidade às enfraquece” (2008, p. 25). Concluindo sua obra, depois de analisar diversos relatos históricos, Voltaire diz que “não é preciso grande arte nem dispor de eloquência bem elaborada para provar que os cristãos devem tolerar uns aos outros (2008, p. 88). E, por fim, faz uma prece:
Já não é mais aos homens que me dirijo; é a Ti, Deus de todos os seres, de todos os mundos e de todos os tempos: se é permitido a frágeis criaturas perdidas na imensidade e imperceptíveis ao resto do Universo ousar pedir-te alguma coisa... Que todos os homens possam recordar que são irmãos! Que encarem com horror toda tirania exercida sobre as almas, assim como sentem execração pelos salteadores que arrebatam pela força o fruto pacífico do trabalho e da indústria” (2008, p.92)

No contexto político, podemos verificar outro aspecto paradoxal da tolerância. Se por um lado a noção de garantia de direitos individuais, tão caros à Revolução Francesa até nossos dias, conduz a uma política absenteísta do Estado, de outro lado há casos em que a intolerância no agir estatal, numa forma de ver, é necessária à estabilidade da sociedade política. Neste sentido, o mesmo Estado deve ser tolerante à livre inciativa de mercado, mas deve combater (não tolerar) os abusos cometidos, por exemplo, contra a livre concorrência. Sobre este aspecto, o autor que se dedicou ao assunto é o filósofo norte-americano John Rawls.
Em sua obra “O Liberalismo Político”, o filósofo verifica que todo ser humano está inserido numa sociedade política, onde, em que pese haver a regência de certos valores e objetivos comuns, independe da anuência dos seus integrantes, que já nascem nela inserido. Então Rawls considera “a sociedade como uma união social de uniões sociais” (2011, p. 27), caracterizada por uma pluralidade de comunidades, com seus valores e objetivos, mutuamente tolerantes. Contudo, a macro tolerância somente é possível com a limitação das liberdades relativas às comunidades menores (micro intolerância), pois o respeito às diferentes concepções “apenas pode ser mantida pelo uso opressivo do poder estatal” (2011, p. 52).
Então, para que uma sociedade política liberal permaneça existindo como tal, se faz necessário um elemento catalisador que permita a convivência tolerante entre todas as comunidades plurais que coexistem politicamente. Aqui está o aspecto paradoxal, pois para que a tolerância seja a regra na sociedade política, o Estado, por vezes, deve reprimir (não tolerar) certos comportamentos. Mas essa intolerância estatal deve ser legitimamente justificada. Assim, de acordo com Alexandre Sá, é a “procura dos princípios capazes de suscitar este consenso justaposto (overlapping consensus) que constitui o núcleo mais fundamental da filosofia política de Rawls” (1997). Ou seja, o desafio consiste em descobrir os princípios gerais que permitem a unidade social e que norteiam a tolerância.
De acordo com o Rawls, para descobrir aquele consenso é necessário desconsiderar os interesses particulares, considerando todos os sujeitos numa relação contratual onde todos ocupam uma posição original, em igualdade e sob um véu da ignorância. Assim será possível instaurar uma sociedade democrática, onde os critérios de tolerância não são definidos com fundamento em concepções particulares, mas sim imparciais. É a “cegueira”, então, que permite escolher os critérios mais apropriados. Afirma Alexandre Sá, o “contrato indica, não um processo partilhado pelo qual os sujeitos se põem de acordo na conciliação de seus modos particulares de argumentar, mas, pelo contrário, o acordo é o único possível” (2008). Para Rawls, debaixo do véu da ignorância, os sujeitos elegeriam dois princípios fundamentais, a saber, a liberdade e a igualdade. Eis, em linhas gerais, os critérios que deveriam reger a tolerância, demarcando, inclusive, seus limites.

CONCLUSÃO
A tolerância, com espoco em Voltaire, é, sem dúvida, uma preciosa virtude social e individual que merece ser defendida, sobretudo, em dias marcados assustadores níveis de violência, especialmente vitimando as minorias, compostas por diferentes e excluídos. Embora paradoxal, um dos fundamentos para a defesa da tolerância em favor de tais grupos é a adoção de comportamentos que não tolerem condutas ilegítimas. Portanto, há casos que a intolerância deve ser combatida com a mesma moeda, desde que justificada em critérios de garantias das liberdades e da igualdade, como proposto por John Rawls.

Referências:
VOLTAIRE, François-Marie Aroeut. Tratado sobre a Tolerância. São Paulo: L&PM Pocket, 2008.
RAWLS, John. O Liberalismo Político. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
SÁ, Alexandre Franco. O Problema da Tolerância na Filosofia Política de John Rawls. 2008. Disponível em “www.lusosofia.net”. Acessado em 29JAN2019.

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