Quando uma camisa resume tudo

Quando uma camisa resume o mundo (ou tenta)

O nosso mundo político, econômico e social é um muito complexo. Alguns chamam de pós modernidade; Bauman chama de mundo líquido - nada é sólido. Basta pegar um metrô numa noite de sábado que é possível ver a grande diferença social e de interesses. Gente de todo tipo: executivos engravatados preocupados nos lucros da Bolsa, famílias querendo proteger seus filhos, casais homoafetivos querendo liberdade, adolescentes flertando, drogados, religiosos, gente "tô nem ai", militantes partidários, e a lista continuaria. Essa complexidade se reflete na política multipartidária, nas diversas escolas da economia, política e filosofia.

Nesta complexa realidade, a grande "jogada" para conquistar uma liderança é defender uma "camisa". Como um time de futebol. A camisa permite uma espécie de unidade entusiasmada, uniformidade. Nós e eles. Quando as pessoas vestem a camisa parece que as diferenças são deixadas em segundo, terceiro, quarto plano. Ateus e religiosos, ricos e pobres, vestem a mesma camisa. Até torcidas de futebol se juntam em atos "democráticos". Quando já se pensou em ver Mancha Verde e Gaviões da Fiel juntos?!

Políticos também são ótimos em encontrar uma "boa" camisa. Um slogan de campanha e de Governo. Seu carro chefe. Sua marca. Há pouco tempo, a camisa era ajudar os pobres, "fome zero" (claro que há controvérsias nela, vide a Lava Jato). Hoje, parece que a camisa da vez é a luta contra os comunistas (já foi a corrupção; agora, nem tanto; o inimigo é outro, as alianças e rompimentos que o digam). Tudo é culpa do comunismo ou da Esquerda, homogeneamente dominadora ou implantada em todos os setores sociais e políticos. Tudo bem que haja um acordo comunista, mas isso não significa que tudo que acontrce de errado é marxista. Parece aquele papo de quem acha que rudo é culpa do diabo.

Muitos não sabem o que foi a esquerda jacobina, não sabem a diferença entre comunismo e socialismo, nem a diferença entre liberalismo político e econômico. Nunca leram Marx e Smith. Não sabem o quem é Tocqueville, Locke e Mill. Querem o SUS e dizem que o Estado deve ser mínimo (não estou dizendo que deva ou não). Ortega y Gaset representou muito bem em Rebelião das Massas. Tudo isso não importa. O que vale é que a Esquerda é o grande inimigo.

A camisa, com sua teoria da conspiração, além de dar a unidade de um exército, possibilita simplificar as coisas: no lugar de tentar entender a complexidade do mundo, tudo se resume na "camisa". Todos os problemas do mundo são facilmente explicados. É muito fácil entender. Para que estudar ciência política, história, sociologia, economia, filosofia, etc., quando temos uma boa e simples camisa ?

A ciência é muito difícil de entender, então vamos inventar o comunavirus. A economia é complexa demais, então vamos falar que isolamento é a artimanha satanista de esquerda, para derrubar o governo do bem. O sistema Judiciário vive um caos há décadas, mas o problema é o STF comunista que luta sujo contra o "povo honesto". No Congresso, tem a bancada da bala, ruralista, evangélica, feminista, etc. mas fica mais simples dizer: são todos corruptos esquerdistas. Uma mão que "explica" tudo e a outra que coloca a culpa de tudo na Esquerda; e as duas mãos ficam muito bem casadas para pintar a camisa.

Dizer que a culpa de tudo é da Esquerda, acontece porque uma boa estratégia de construir e consolidar uma camisa é fabricando teorias da conspiração. Mitos de monstros ainda são fantásticos instrumentos de persuasão. Eis o temível Foro de São Paulo. Dizem que estão lutando em favor do Brasil, da família e dos bons costumes, contra os terroristas que querem corromper nossas crianças. A mesma acusação contra Sócrates. No Brasil, a Guerra Fria está mais quente do que nunca.

Antes a guerra era contra a fome, mas escondia outra nos bastidores, ocultada no petróleo. Agora é preciso fazer uma limpeza geral "metralhando" os inimigos esquerdistas (um discurso que tem incendiado o ódio nas redes sociais). A massa extremista, mal ou bem interpretando o discurso, invade hospitais e empurram jornalistas (querem liberdade, mas só a deles). Dizem que são casos isolados, mas o fato é que o ódio está cada vez mais deixando de ser exceção. Maconheiros, idiotas, jumentos, imbeciais são adjetivos comuns nas redes sociais (daí pra pior). Não necessita de petróleo para ocultar. O ódio está às claras.

Aliás os terroristas radicais islâmicos também usam a mesma estratégia. Tem camisas semelhantes: "contra o Ocidente pervertido", cujo maior representante são os EUA. O próprio marxismo, tão criticado, defendia a rebelião do proletariado contra os burgueses. Hoje, a rebelião das "pessoas de bem" pedem a queda do império esquerdista. Meras coincidências.

A mídia pode ser livre, desde que não seja contra a minha camisa. Os arquinimigos eram o Lula, depois a "# GloboLixo", "# Foice de São Paulo. A lista foi aumentando. Moro, Mandetta são traidores comprados pela esquerda; até Di Capprio entrou. Hoje o alvo é OMS, Alexandre de Moraes e o STF. Tudo é facilmente explicado apenas com uma camisa. Qualquer um pode entender e se apaixonar por ela. Talvez não são tantos, pois o Aliança pelo Brasil conseguiu as assinaturas. Mas o poder de uma camisa é enorme, pois ela cega; somente alguns.

A camisa é perfeita (mas nem tanto). Vestem os radicais de hoje (extremistas bolsonaristas), como vestiu (e veste) os extremistas lulopetistas, chavistas e tantos outros. Hoje, com a mesma estratégia de ontem, a camisa traz unidade, simplifica as coisas, resume tudo na luta contra os "terroristas" e, fechando com chave de ouro, traz um "messias", sem qualquer mácula, escolhido diretamente por deus, que nos salvará das garras dos demônios comunas, custe o que custar (mesmo se o preço for o ódio e o caos institucional). Patriotismo, família, deus e morte aos comunistas ! Eis a camisa, contraditória e simplória, mas "eis a camisa!".

Obs.: não acredito em messianismo com seus salvadores da pátria, nem de esquerda ou de direita. Também não acredito em teorias da conspiração da esquerda ou direita; o mundo político é muito complexo e heterônomo. Sou a favor da manutenção da ordem constitucional, das instituições e da democracia. E, mais importante, repudio todo discurso de ódio polarizado, incompatível com a espiritualidade cristã.

Jefferson Pontes - Filosofia, Justiça e Espiritualidade

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