NEOCONTRATUALISMO RAWLSIANO COMO LIMITE À

SERVIDÃO VOLUNTÁRIA ANTIDEMOCRÁTICA



GUIMARÃES, Jefferson Pontes

 


RESUMO

Recentes movimentos antidemocráticos tem desafiado várias áreas do pensamento, incluindo a Filosofia Política. Tendo em vista que a democracia está alicerçada na vontade do povo, surge o problema sobre quais seriam os limites que podem legitimamente impedir que um determinado povo renuncie à sua soberania política. Embora a democracia seja o regime que melhor garanta os direitos fundamentais, ocorrem essas manifestações contrárias a ela. Para investigação bibliográfica dessa questão, inicialmente, é interesante conhecer a filosofia da democracia, desde a Grécia Antiga até o modelo contemporâneo, onde é reconhecida como o regime mais popular do mundo. Depois, a partir do conceito de servidão voluntária de Étienne de La Boéti, é possível investigar uma proposta de entendimento a respeito das causas dessas manifestações antidemocraticas, na medida que o conceito sintetiza uma relação entre os que desejam dominar (o tirano e seus cúmplices). Então, partindo para o desafio quanto aos legítimos limites à antidemocracia, será necessário estabelecer um pano de fundo, construído pela teoria contratualista clássica, aliás onde já podem ser extraídos alguns daqueles limites no jusnaturalismo de John Locke e Rousseau. Esse é o pano de fundo para o neocontratualismo rawlsiano, onde o pacto social é construído num estado original de equidade e os pactuantes, sob o véu da ignorância, estabelecem a liberdade e a igualdade como princípios basilares de justiça. São esses princípios que impõe legitimos limites intransponíveis às manifestações antidemocráticas, pois são o fundamento do próprio pacto.


PALAVRAS-CHAVE: Antidemocracia. Filosofia Política. Neocontratualismo. Rawls.



1. INTRODUÇÃO


O Brasil tem experimentado nos últimos anos a alavancada de manifestações consideradas contrárias ao regime democrático. São discursos e outros atos representados nas redes sociais e em ativismos de rua, com palavras de ordem e faixas defendendo uma intervenção militar e o fechamento de instituições republicanas. Por trás, estão seguidores radicais do atual presidente, que defendem a sua perpetuação no poder, sem ser “impedido de governar” pelo Poder Judiciário e Legislativo (FALCÃO, 2021). Num dos momentos mais emblemáticos desse movimento, ocorreu a prisão em flagrante de um deputado federal, decretada ao defender nas redes sociais o retorno do Ato Institucional nº 5, o mais duro ato normativo editado pela ditadura militar (PONTES, 2021).

Por dever de justiça, importa pontuar que este movimento antidemocrático não representa a opinião da maioria dos eleitores do presidente, muito menos a maioria da população. Além disso, não é exclusivo deles, já que radicais de idelologia politica de esquerda também já defenderam algum tipo de golpe antidemocrático (SAMPAIO, 2018). Trata-se, então, de um tema que desafia a Filosofia Política, no campo hipotético, mas não irreal ou utópico.

É neste contexto, supondo que os radicais minoritários se tornassem maioria numérica ou mesmo uma minoria que venha ganhar poder político suficiente para um golpe antidemocrático, que a presente pesquisa analisará o problema a partir da seguinte pergunta: se a vontade do povo é a própria essência da democracia, como legitimar a imposição de limites à vontade antidemocrática? Em outras palavras, considerando que a democracia é justamente a condução política de uma nação consoante a vontade da maioria, resta investigar se essa maioria poderia renunciar à própria democracia.

A partir deste contexto, a pesquisa será dividida em três momentos. Primeiro, apresentará a ideia filosófica acerca da democracia, desde os gregos até o modelo contemporâneo. E, então, irá sugerir as causas que conduzem um povo a desejar renunciar sua liberdade e autonomia política. Por isso, com foco na tentativa de responder a pergunta proposta acima, será apresentada a concepção de servidão voluntária, formulada em obra com o mesmo título do filósofo francês Étienne de La Boétie, para quem a cumplicidade ou a amizade e o hábito seriam os primeiros sustentáculos da servidão.

Em seguida, o trabalho buscará na teoria contratualista clássica os fundamentos necessários para desenvolver uma proposta que possa trazer limites legítimos à antidemocracia. Neste ponto, será apresentado, de forma sucinta, o pensamento dos três maiores contratualistas: Hobbes, Locke e Rousseau; com especial destaque ao liberalismo e constitucionalismo jusnaturalista dos dois últimos.

E, por fim, na terceira parte da pesquisa será discorrido sobre a teoria política do filósofo norte-americano John Rawls, especialmente na sua proposta construída por meio do modelo hipotético de estado original de igualdade sob o véu da ignorância. É por meio dessa abstração que o pensador buscará descobrir os princípios fundamentais de justiça que norteará a sociedade política ideal, a saber, a liberdade e a igualdade; possibilitando a celebração de um pacto social. Em considerações finais, esses princípios comporão a proposta de limites legítimos aos movimentos antidemocráticos.



2. ESTADO, DEMOCRACIA E OS LIMITES À ANTIDEMOCRACIA


Antes de seguir com o desenvolvimento do artigo, é importante colocar que sua fundamentação metodológica se baseia no modelo de pesquisa bibliográfica, com foco em obras de Filosofia Política, clássicas e contemporâneas, tais como dos já citados Rosseau, Locke e também da professora Marilena Chaui, Flamarion Caldeira Ramos, Anderson Almeida, Pedro Medeiros, Michel Sandel e outros. Neste espectro, ainda foram abordadas obras que discorrem sobre o conceito, história e fundamentos da democracia, com destaque para o trabalho realizado por Robert Dahl. Quanto à análise do fenômeno antidemocrático contemporâneo, a obra medieval do filósofo Étienne La Boétie foi utilizada, fazendo uso da teorização sobre as características e causas da servidão voluntária. Por fim, a metodologia de pesquisa bibliográfica focou a teoria de justiça de John Rawls, sobretudo na obra Uma Teoria da Justiça, que servirá não só para apresentar o modelo neocontratualista liberal, mas também construir uma proposta de fundamentação dos limites à vontade antidemocrática.

Neste pesquisa bibliográfica, quase sempre serão feitas citações por paráfrase e apenas raramente serão feitas citações diretas curtas.



2.1 Democracia e Servidão Voluntária Antidemocrática


Atualmente, segundo o ranking da The Economist Intelligent Unit, o Brasil é classificado como “democracia imperfeita”, ocupando a 52ª posição do índice de desempenho de democracia, onde são considerados critérios de legitimidade das eleições, cultura política da população e outros (CHADE, 2020). De acordo com este ranking, 75 países são democracias perfeitas e imperfeitas; 38 países tem regime híbrido; e, 53 tem regime autoritário. Embora não exista um consenso a respeito do significado da democracia, e mesmo que o índice, em números absolutos, diga o contrário, o regime democrático é considerado o mais popular, pois é o que melhor garante os direitos fundamentais, segundo o entendimento majoritária de filósofos, cientistas políticos e juristas. Por causa dessa popularidade é comum uma nação autodenominar-se democrática, ainda seja de viés autoritário (MEDEIROS, 2016).

Não há consenso sobre quando o regime democrático foi inventado, mas há fortes indícios históricos de que ocorreu em mais de um lugar e forma de sociedade, desde a antiguidade. É provável que houvesse uma forma democrática de governo em ajuntamentos humanos com menor interferência externa, como ocorria, por exemplo, nas comunidades de caçadores-coletores. Só mais tarde, com o surgimento das comunidades agrícolas, é que ocorreram as primeiras formas sociais hierarquizadas que teriam minado os modelos democráticos. De todo modo, existem informações seguras de que em 507 a.C. já havia entre os atenienses um regime democrático que durou pelo menos até o domínio macedônico (DAHL, 2001).

De origem grega, a palavra “democracia” deriva de duas expressões: demos e kratos. A primeira é traduzida por “povo” e a segunda por “poder”. Expressa a ideia de regime onde os cidadãos de uma cidade (polis) sejam os titulares do poder político. Em paralelo de etimologia, a título de exemplo, a monarquia é o governo de um e a oligarquia de alguns.

Entre os gregos, todos os cidadãos podiam e deviam participar das assembleias democráticas (ekklesia), que ocorriam pelo menos quarenta vezes por ano, onde todos tinham a mesma posição de igualdade, com os mesmos direitos de voto (isegoria) e perante a lei (isonomia). Além da ekklesia, havia o Conselho de Quinhentos que era responsável em preparar a pauta, organizar as assembleias e executar suas decisões. As funções públicas também eram ocupadas em igualdade de condições por todos, sendo designados por meio de sorteio. Entretanto, apenas os cidadãos (homens atenienses livres) participavam da vida política da cidade, de modo que os idiotes (de onde deriva o termo “idiota”) eram os que não detinham atuação política, tais como mulheres, escravos e estrangeiros. (MEDEIROS, 2016).

Em Roma também havia uma forma democrática de governo, mas preferiram utilizar a expressão “república”, que é uma alusão não apenas à coisa pública (res publica), mas também à instituição do povo como uma organização política. A república não tem a finalidade apenas de atendimento das necessidades individuais, mas resulta do espírito social inerente do homem, sob o mesmo sentimento de justiça e igualdade.

Como colocado, alguns países se auto afirmam democráticos, quando estão, de fato, longe da essência igualitária. Sob cortinas de fumaça representada em eleições duvidosas, deturpam o regime. Na verdade, todas as formas de regime político podem ser desvirtuadas, umas mais do que outras. Uma monarquia, por si só, tem uma tendência autocrática, e se torna uma tirania quando o governo de um só é opressão. A aristocracia pode facilmente caminhar para se tornar uma oligarquia pela dominação. E a democracia será uma oclocracia quando a igualdade desarrazoada degenerar os desiguais. Isto pode ser verificado numa importante discussão a respeito dos direitos das minorias. Por esses motivos, a democracia foi, e ainda é, criticada por alguns pensadores. Platão (séc. IV a.C.), por exemplo, entendia que o povo não estava apto para o governo da polis, que deveria ser exercido por sábios, tais como os filósofos. Aristóteles (séc. IV a.C.) também criticava a democracia, já que o regime propagava a divisão entre ricos e pobres, porquanto a vontade da maioria pobre subjulgaria os ricos. (MEDEIROS, 2016).

Em que pese essas e outras críticas, não restam dúvidas de que é o melhor regime político. Neste sentido, Winston Churchill (1874-1965), primeiro-ministro inglês, disse que “a democracia é o pior dos regimes, mas não há nenhum melhor do que ela”. Entretanto, as críticas são bem vindas, já que realmente existe o risco concreto de a democracia se tornar uma tirania da maioria. É contra esse perigo que esta pesquisa está focada.

Diante de tantas diferenças, críticas e elogios, surge a pergunta: seria possível identificar os elementos fundamentais de uma democracia, para que uma nação seja reconhecida como tal? Ficou evidente na história e na doutrina que a igualdade é um dos mais importantes pilares democráticos. Sem igualdade não há democracia. Aristóteles entendia que a finalidade da cidade seria obter o bem comum determinado pelos princípios da justiça e da virtude, com respeito à igualdade (DAHL, 2001). A isonomia ou igualdade estaria relacionada com a possibilidade de um cidadão exercer a atividade política nas mesmas condições que os demais. Neste sentido, enquanto as relações privadas são marcadas pela hierarquia (exemplo, família), as relações públicas que se estabelecem na assembleia da pólis estão alicerçadas na isonomia (CHAIU, 2014).

Ao lado da igualdade, a democracia contemporânea tem consolidado algumas características essenciais. Segundo o professor Robert Dahl (2001), uma democracia deve possuir: 1) participação efetiva de todos os membros para que os outros conheçam suas opiniões; 2) igualdade de voto, não havendo distinção valorativa ou discriminação em relação à pessoa, religião, condição social ou outra; 3) entendimento esclarecido sobre o processo político do seu país, de modo que todos estejam num nível básico cidadão; 4) controle do programa de planejamento, permitindo que o processo seja revisto sempre que se fizer necessário; e, 5) inclusão dos adultos. Todos esses elementos são fundamentais, sendo que, hoje, a questão do esclarecimento parece ser um dos pontos mais atacados. Isso pode ser verificado na quantidade de informações falsas ou desvirtuadas que circulam nas redes sociais que corrompem a democracia. Os movimentos antidemocráticos são alimentados pelas fake news e pela cultura do ódio ideológico.

Até aqui, foi visto a origem da democracia, suas críticas e as razões pelas quais é considerada o melhor regime político. Então, é o momento de avançar com a tentativa de explicar os porquês dos movimentos que defendem posturas antidemocráticas. Para isso, sendo uma pesquisa no campo da Filosofia Política, o objeto de estudo não será empírico, mas tem foco numa proposta baseada na obra Discurso da Servidão Voluntária de Etienne de La Boétie, para entender as causas do desejo antidemocrático. Essa obra não foi um manifesto contra um governo específico, mas sim uma investigação filosófica, abstrata e racional, do problema. Escrita por volta de 1552, o texto é enigmático e envolve dois conceitos antagônicos: O voluntário é o ato que nasce de forma espontânea ou da própria vontade. Já a servidão está associada à compulsoriedade e à violência (CHAUI, 2014).

Ao estudar a servidão, La Boétie identifica três tipos de tiranos: os que adquirem o poder pela força, os que assumem o poder pela sucessão hereditária (próprio das monarquias) e, o mais surpreendente, os que alcançam a posição por meio da eleição. Chegam ao poder por formas diferentes, mas a tirania os identifica. Conquistadores oprimem como presas, sucessores escravizam e “os que são eleitos tratam o povo como touros” (LA BOÉTI, 2009, p. 23). O primeiro e segundo tipo são os mais evidentes. O terceiro tipo, os eleito, guarda maior semelhança com os atuais movimentos antidemocráticos. Embora há quem diga que não seria possível um autogolpe dado por um presidente eleito, na verdade La Boétie, desde o século XVI, já reconhecia que o eleito pode se tornar um tirano, quando se perpetua no poder ou assume posturas autoritárias contra as instituições. Entretanto, o maior interesse de La Boétie não é o tirano, dedicando-se quase que exclusivamente aos que se sujeitam à dominação. O filósofo afirma que “não são os esquadrões de cavalaria, nem os batalhões de infantaria que defendem o tirano”, mas são poucos – cúmplices da crueldade e dos prazeres (LA BOÉTI, 2009, p. 32). Esses “poucos” podem ser seiscentos, um milhão, não são a maioria; mas suficientes para manter o tirano. Estão na classe política, militares, empresários. São os que sustentam o tirano.

Esses poucos arquitetam, falseiam, gritam, lideram, planejam, controlam a grande massa, fazendo a voz e a personalidade do tirano dominarem os muitos. O tirano, embora seja um, é provido de inúmeros olhos, ouvidos, braços, pernas destinados a lhes servir das mais variadas formas. São estes que sustentam diretamente a tirania, procurando variadas formas de idolatrá-lo. O tirano incorpora a figura messiânica, esperança num mundo sem moral para estabelecer a salvação. Arremata, La Boétie: “Ó Deus, pode haver maior castigo e martírio que passar a noite imaginando maneiras de agradar o tirano?” (LA BOÉTI, 2009, p. 26). O tirano conquista e domina esses "poucos" para fazer multiplicar os seus tentáculos.

Porque esses poucos, voluntariamente, escolhem e servem o tirano? Por natureza somos livres e iguais, mas o que os leva a servir? De fato, a vontade de servir nasce e se desenvolve da vontade de dominar. Essa é a principal tese de La Boétie. Há entre o tirano e os seus cúmplices uma relação de identidade, que o filósofo identifica como um tipo de amizade. Tem-se um perverso espelhamento entre o tirano e os seus seguidores; não como apenas um paradigma, mas uma relação que “não mostra a sociedade espelhando o tirano, mas espelhando-se a si mesma… estamos numa sociedade tirânica” (CHAUI, 2014, p. 45). Tirano e cúmplices são iguais! Possuem o mesmo desejo de dominar, de subjugar os demais para prevalecer a sua ideologia, a sua cosmovisão, para que todos sejam iguais. As minorias, não no sentido quantitativo mas identitário, se adequam ou são excluídas. Normalmente com discursos do tipo: “para o bem da nação”, “em favor da família e dos bons costumes”, “pela moralidade”, cúmplices e tirano firmam aliança. Tal como analisou La Boéti, os atuais movimentos antidemocráticos também tem essa característica do desejo de impor sua ideologia. A intolerância e a demonização da ideologia "comunista" ressurge das catacumbas da Guerra Fria, cuja principal arma continua sendo a mentira, como nos "Planos Cohen". Também há, do outro lado, radicais da anarquia e do escárnio, desejosos de impor sua amoralidade e destruir o mundo cristão da família tradicional, do capital e da meritocracia. Em todos esses grupos de extremistas não há qualquer intenção pelo diálogo, mas apenas pelo domínio. Estão abrindo mão de suas liberdades, “mas acreditam", iludidos ou convictos, que "estão conferindo poder a si próprios” (CHAUI, 2014, p. 45). As armas da intervenção militar sustentam a tirania secundariamente. “Sua proteção é a sociedade inteira que o deseja porque deseja tiranizar" (CHAIU, 2014, p. 14).

Além da cumplicidade, a servidão voluntária também se torna um hábito, um vício. Paulatinamente, “os muitos”, a maioria que não são diretamente cúmplices, vão sendo integrados na servidão e sequer percebem que estão servindo. Ainda que no início haja resistência, aos poucos, geração após geração, se acostumam à servidão, de modo que a imposição de outrora se torna em voluntariedade. “É o que acontece com os cavalos, que no início mordem os freios e depois brincam com ele" (LA BOÉTIE, 2009, p. 34). Os poucos servem para dominar impondo sua ideologia e os muitos servem porque se habituaram à servidão.

Para concluir este ponto, nada mais oportuno que a célebre exortação: “sede resolutos em não querer servir mais e sereis livres. Não vos peço que o enfrenteis, mas somente que não o sustenteis” (LA BOÉTIE, 2009, p.18).



2.2 Contratualismo Clássico: Pano de Fundo Rawlsiano e Primeiros Limites


Desde a Antiguidade, muitas teorias surgiram na tentativa de explicar a origem do Estado. Porque vivemos em sociedade? Para Platão, o surgimento da cidade ocorre devido às demandas de sobrevivência, segurança, trocas de produtos e outras para as quais os homens não conseguem executar sozinhos. Aristóteles também entende que a sociabilidade é uma condição necessária e inerente do ser humano, mas não apenas uma finalidade interessada, pois o homem é um animal político (zoonpolitikón). Segundo Aristóteles, somente um animal ou um Deus poderia prescindir da sociedade, mas nunca o homem(MEDEIROS, 2016).

Entretanto, diferente da visão naturalista aristotélica, defendendo que a associação não é decorrência natural da condição humana, a escola contratualista encontra ampla relevância acadêmica, sustentada, sobretudo, por Thomas Hobbes (1588-1679), John Locke (1632-1704) e Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). Por justiça, merece ser colocado que existem outros pensadores, anteriores e posteriores, aos consagrados contratualistas. É o caso do jus filósofo romano Cícero (106–43 a.C), que defendia a origem do estado a partir de um consenso do povo em busca do justo ou do direito, o juris consenso. No republicanismo de Cícero, o fundamento está no instinto natural comunitário do homem que resulta num consenso legislativo pela garantia de seus interesses. E, entre os pensadores posteriores, encontra-se, dentre outros, Karl Marx, entendendo que a origem estatal está num ato de violência e de dominação, na medida que o Estado seria desnecessário para a organização da sociedade e só existe para possibilitar a dominação de uma classe sobre outra (QUADROS, 2016).

Não é o propósito desta pesquisa fazer uma investigação profunda de todas as teses sobre a origem do Estado, concentrando-se apenas na visão contratualista, que é o pano de fundo teórico da teoria rawlsiana. Ainda assim, serão apresentados apenas os pontos essenciais do contratualismo clássico que possam servir de arcabouço para compreender a proposta neocontratualista de John Rawls, especialmente a noção de estado de natureza e de pacto social.

Diferente de pensadores que lhes antecederam, como Cícero e Maquiavel, que desenvolveram suas teses com base em suas respectivas realidades político-sociais, a teoria contratualista tem um objetivo normativo, embora eventualmente seja descritiva. Sendo assim, os contratualistas partem de uma abstração descritiva, o estado de natureza, para construir o seu objetivo normativo ou de “dever ser”, o estado civil. Isso não quer dizer que a abstração é algo irreal, mas significa que possui uma realidade racional que lhe é peculiar. Também não significa que a abstração não possa encontrar correlação com o mundo concreto, já que, normalmente, o abstrato se extrai do concreto – tal como o conceito de razão se extrai de todo homem concreto. Entretanto, a descrição abstrata de como era antes serve como instrumento hipotético para compreender o que deveria se tornar no mundo político concreto. O papel normativo fica ainda mais claro em Locke e Rousseau, que adotaram um compromisso crítico contra o modelo político de seu tempo, em busca de como deveria ser, tanto é que seus pensamentos influenciaram decisivamente a Revolução Francesa em 1789. Além disso, esse método de abstração também será utilizado por Ralws para descrever o estado original. Foi nesse estado de natureza ou original que teve origem numa espécie de contrato ou pacto social, onde os indivíduos de dada comunidade estabeleceram um laço normativo, tácito ou explícito, que os uniam sob a mesma relação jurídica fundamental, dando origem ao Estado.

Começando por Thomas Hobbes, sua mais importante obra, O Leviatã, foi publicada em 1651, pouco tempo depois de Cromwell ter tomado o poder na Inglaterra. Para Hobbes, o estado de natureza é marcado, principalmente, pela condição de plena liberdade e igualdade – conceitos que se tornam essenciais no contratualismo clássico e também no neocontratualismo rawlsiano. Face à plena liberdade, um indivíduo poderia fazer qualquer coisa, dentro dos limites das suas próprias possibilidades naturais, desejos e interesses. Tudo é permitido num contexto de liberdade irrestrita, onde não há imposições normativas ou morais, não há direito e injusto. Para Hobbes, as leis naturais não são normativas no sentido obrigacional ou coercitiva. Alem disso, a natureza humana é dada para o mal. "O homem é o lobo do homem” (homus homini lupus). É este contexto e o medo da morte violenta, que conduz os homens a estabelecer um contrato social que lhes garanta paz e segurança, ainda que sob o custo de supressão daquela liberdade incondicional. O contrato social é a própria criação do direito e do poder político soberano, fundamentados no consenso. Ou seja, o homem resolve negociar sua liberdade para ter paz (ALMEIDA, 2015). Surge o estado civil hobbesiano, onde o Leviatã, o Estado Absolutista, tem total autoridade e o poder da espada para punir os transgressores do contrato e ordenar a vida em sociedade.

John Locke, também entendia o estado de natureza como o ambiente onde havia liberdade e igualdade. Na sua principal obra de Filosofia Política, Segundo Tratado sobre o Governo, diferente de Hobbes, os homens viviam em paz, criados por Deus em igualdade, sob o direito natural eminentemente racional, no mais claro otimismo prévio à Revolução Gloriosa. Pois, “o estado de natureza tem uma lei que o governa e que a todos obriga” (LOCKE, 2014, p. 48). Entretanto, à medida que as relações ficaram complexas, trouxe a distribuição desigual das posses e a pobreza, desrespeitando os direitos naturais, especialmente o igual direito de propriedade. Disto surge a guerra e a necessidade do estabelecimento de um contrato social, legitimando o Estado para garantir os direitos naturais.

Para Jean-Jacques Rousseau, os homens no estado da natureza estavam em plena liberdade e igualdade, baseada em relações de afeto. Na natureza havia zelo suficiente para a sobrevivência prazerosa, onde nem mesmo a ciência era necessária, já que a natureza supria todas as necessidades do homem (ALMEIDA, 2015). Semelhante a Locke, o estado da guerra rousseauniano começa relacionada com a propriedade - um homem decidiu cercar um pedaço de terra e passou a chamar de seu. De acordo com Rousseau, a partir disso surgem as guerras, a miséria e a desigualdade, que poderiam ser evitadas se o gênero humano tivesse tido a coragem de arrancar aquelas primeiras estacas, impedindo que alguém tomasse posse daquilo que não pertence a ninguém (ROUSSEAU, 2017). Em sua obra, O Contrato Social, Rousseau afirma que o pacto social retira a liberdade natural dos homens para lhes dar a liberdade civil e a proteção da propriedade privada. Então, é o Estado que aprisiona ou que mantém a ferros o homem, que nasce livre (ROUSSEAU, 2017).

Todos os contratualistas tinham em comum a noção do estabelecimento de um estado civil a partir de um contrato social que retirou os homens do estado de natureza. Relacionando o problema antidemocrático com o que foi dito aqui sobre os contratualistas, sem dúvida, o modelo proposto por Hobbes seria o mais próximo do movimento intervencionista militar, pois o regime político hobbesiano é autoritário e absolutista. Entretanto, há certo liberalismo no fundamento, já que não se pode perder de vista que o poder do soberano decorre do consenso. Sendo assim, uma vez desfeito o pacto, quando o povo entende que o soberano não mais representa os termos do contrato social, surge o direito de resistência. Portanto, mesmo no modelo absolutista hobbesiano há limites (RAMOS, 2017).

Quanto à Locke, é um filósofo político liberal (no sentido de absenteísta e limitador do poder do Estado), estando entre os primeiros constitucionalistas, com raízes no jusnaturalismo do Hugo Grotius (1583-1645) e outros. Ao mencionar o liberalismo, tem-se em foco o movimento de defesa de temas como a tolerância política e religiosa, a separação dos poderes do Estado, liberdade de manifestação de pensamento e outros. Contra o Estado Absolutista da dinastia dos Stuart, Locke filia-se ao Parlamentarismo inglês. Dialogava contra o absolutismo divino, proposto por Robert Filmer, como também pelo jusnaturalismo de Hobbes. Locke creditava o poder político do Estado Liberal ao Parlamento para garantia do mais importante direito natural, a propriedade. Então, antes de Montesquieu, Locke defende a separação de poderes, numa dualidade estatal, representada pelo monarca, executor das leis e dos julgamentos; e pelo Legislativo, representando o povo pelos homens com propriedade (RAMOS, 2017). Portanto, há um limite à atuação do Estado, a saber, tratar todos os indivíduos igualmente livres, perante a irrenunciável lei natural da isonomia, inspirado na democracia ateniense (VALDEORIOLA, 2015).

Aproximando-se a Locke, a teoria rousseauniana também é de natureza constitucionalista, ou seja, defende limites à atuação do Estado. Para isso, Rousseau desenvolveu um conceito muito importante para a construção da democracia: a vontade geral. Para isso distingue a vontade privada e a vontade pública dos cidadãos. A primeira seria aquela voltada para os assuntos particulares e de suas famílias; e a vontade pública é aquela que se refere ao bem comum da coletividade. Uma não pode sobrepor ou interferir na outra, de modo que a vontade pública não pode ser definida pela privada. A soma de todas as vontades públicas resulta não na “vontade de todos”, mas na “vontade geral”. Cabe ao Estado ser dirigido pelo pacto social estabelecido pela vontade geral. Então, não cabe impor a vontade geral sobre a privada, anulando a liberdade individual.



2.3 Neocontratualismo Rawlsiano


Nesta última etapa do artigo, a pergunta sobre os limites legítimos à servidão voluntária antidemocrática será respondida com base na teoria da justiça do filósofo norte-americano John Rawls (1921-2002). Para isso, foi visto que a noção de democracia, desde os antigos gregos, contém em si mesma a ideia de igualdade, o que também é um marco importantíssimo na teoria rawlsiana. Visto também que o contratualismo liberal de viés constitucionalista parte da noção de estado de natureza e leis naturais, sendo este outro aspecto que influenciou o pensamento de Rawls. Para completar este pano de fundo, Rawls dialoga contra o sistema ético-político que vigorou até o início do século XX: o utilitarismo.

Não é o objetivo desta pesquisa aprofundar o estudo sobre o Utilitarismo, senão o suficiente para contextualizar o desenvolvimento teórico de John Rawls. É possível encontrar as raizes utilitaristas, dentro do campo da Filosofia Política, na obra O Princípio de Nicolau Maquiavel (1469-1527). Nessa obra, o pensador florentino desenvolve a tese de que as ações do príncipe devem ser voltadas para a manutenção do poder. Ali se extrai a clássica ideia utilitarista: "os fins justificam os meios"; onde "os fins" é a manutenção do poder do príncipe. Contudo, a Escola Utilitarista ganha força sistemática, especialmente, com Jeremy Bentham (1748-1832) e John Stuart Mill (1806-1873), dominando a discussão política. Então, o Utilitarismo, em síntese, parte da busca de um bem comum ou a felicidade, como finalidade posta e determinada que e deve nortear toda conduta política e social. A felicidade da maior quantidade de pessoas é o fim que justifica diferentes ações independentes da sua natureza, composição e origem.

Verifica-se, então, um pano de fundo composto pelas noções de isonomia na democracia, as leis naturais no contratualismo e o bem comum do utilitarismo. Sobre este pano de fundo, resta ainda trazer dois pressupostos que nortearão a teoria política rawlsiana: o pluralismo e a racionalidade razoável.

Uma das principais características do mundo pós-moderno é o pluralismo. Para entender esse conceito basta ver que durante a Idade Média havia uma hegemonia de pensamento, estabelecido pela Igreja, principalmente, no campo religioso, mas também com grande dominância no campo moral e no político. O próprio Hobbes, Maquiavel e, de forma mais enfática, Jean Bodin (1530-1596), entre outros pensadores da Filosofia Política, defendiam o conceito do direito divino dos reis, para justificar a autoridade política do Monarca designado pela vontade de Deus. Isso evidenciava a centralidade da Igreja e é um exemplo de como as ideias giravam em torno de determinada perspectiva ideológica. Até que a Modernidade experimentasse o Iluminismo que abriu as portas para o pluralismo presente no atual momento pós-moderno. Não há mais um padrão moral e ideológico seguro, dogmático e inquestionável. Mesmo no campo político, a Constituição Federal brasileira, influenciada por esse espírito, estabelece que um dos fundamentos da República é o pluralismo político, buscando-se uma forma pacífica de convivência entre diferentes cosmovisões políticas.

Claro que a hegemonia não era, por si só, algo natural, como se todos tivessem uma única forma de pensar. O monopólio ideológico cristão, por exemplo, facilitava a uniformidade, contudo ocorriam manifestações fora dos padrões vigentes que eram, eficazmente, reprimidos, tal como ocorreu pela Inquisição. Não só no período medieval, mas também o mundo contemporâneo assistiu (e assiste) ações violentas contra à diversidade. Nazismo, fascismo, terrorismo islâmico, ditaduras socialistas, golpes militares latino-americanos, entre tantos outros exemplos autoritários ou totalitários para calar os pensamentos plurais divergentes.

Neste contexto de pluralismo, seria possível encontrar ideias em comum? É possível definir um padrão que possibilite existir uma sociedade justa, mesmo que os seus cidadãos estejam divididos entre si por interesses e valores não apenas divergentes, mas, por vezes, irreconciliáveis entre si? (RAMOS, 2014).

Rawls verifica que o Utilitarismo não possui as respostas e soluções necessárias para conduzir um mundo pluralista. Somente uma visão com pretensão universal poderia alcançar esse objetivo. Para o filósofo norte-americano fica claro que uma minoria étnica ou religiosa, por exemplo, não aceitaria o Utilitarismo, pois ninguém desses grupos gostaria de ser oprimido pela maioria (SANDEL, 2016). Por isso, não importa debater a maior quantidade de felicidade para o maior número de pessoas, mas o interesse é investigar valores aplicáveis a todos, independente de suas particularidades. Enquanto no Utilitarismo o bem comum é identificado com valores que representem um particular tempo e espaço, como a maioria, quantitativa ou mais forte; na teoria da Justiça de Rawls o bem comum é aquele que garante condições vantajosas para todos, indistintamente. Daí que a universalidade é essencial para o modelo político contemporâneo.

Já foi colocado neste trabalho que os conceitos como “bem comum”, “bons costumes”, “defesa da família” e outros são comumente utilizados para legitimar uma imposição ideológica. Em nome desses conceitos, direitos e interesses individuais particulares são negados, simplesmente porque são considerados subversivos, consoante a posição da maioria ou dos mais fortes, política, religiosa ou economicamente. O pluralismo pós-moderno, com o qual Rawls está dialogando, reinterpreta esses conceitos a partir de critérios universais. Não nega a importância do bem comum, contudo propõe que o seu conteúdo seja definido a partir desses critérios, não restritos aos atendimento de interesses particulares, ainda que de maiorias. Por conseguinte, Rawls prefere, no lugar do bem, discutir os princípios de justiça, pois o Estado deve manter neutralidade ética (RAMOS, 2014).

Portanto, a teoria política rawlsiana busca esses princípios universais, válidos para todas as pessoas, independente de suas condições particulares. Princípios com os quais todos concordariam em um ambiente original de igualdade ou equidade. Parece óbvio que encontrar um consenso em relação a esses princípios é um objetivo ousado ou impossível, já que somos tão diferentes e plurais em nossas visões de mundo. Portanto, para alcançar esse propósito seria necessário nos afastar das diferenças (SANDEL, 2016).

Então, o primeiro passo dessa busca se dá a partir da substituição do modelo de estado de natureza, proposto pelos contratualistas, pelo modelo de estado original. Para entender esse estado, é necessário considerar que há uma dificuldade inerente em distinguir a universalidade no mundo histórico material. A marca distinguível presente nesse mundo é a particularidade dos fenômenos aparentes. Usando a terminologia kantiana, a universalidade da “coisa em si” não é acessível pelos sentidos, senão por meio de um exercício racional abstrato, um juízo a priori. Assim se justifica a abstração racional do estado original.

Aqui é o lugar para colocar o segundo pressuposto da teoria rawlsiana. Além do pluralismo, a racionalidade é alicerce essencial. Esse pressuposto decorre da própria metodologia empregada, pois o estado original sob o véu da ignorância é uma abstração que exige um esforço racional para ser desenvolvida. Além disso, um esforço ainda maior é requerido quanto ao limite da própria racionalidade com base num critério de razoabilidade ou bom senso. Neste sentido, o estado original da teoria neocontratualista é um modelo hipotético racional, capaz de servir de ambiente hermético para teorizar a universalidade de princípios fundamentais.

O estado original é o ambiente onde se estabelece o contrato ou pacto social. Enquanto os contratualistas partem, em geral, de concepções antropológicas relativas à natureza humana; Rawls propõe que o estado original seja um ambiente hipotético capaz de isolar os contratantes, sob o véu da ignorância, identificando valores universais não necessariamente coincidentes com valores particulares. De certa foram há uma aproximação com a vontade geral de Rousseau. O véu de ignorância é um artifício utilizado para que os contratantes sejam colocados, abstratamente, em absoluta igualdade. Todos são ignorantes quanto a suas diferenças de sexo, credo, cor, raça, condição financeira, papel social, identidade ideológica, nada (SANDEL, 2016). Todos seriam iguais e estariam na mesma condição, sob o véu de ignorância no estado original. Só assim, segundo Rawls, poderiam deliberar e entrar em consenso sobre os princípios fundamentais e universais, válidos para todos (2000). Daí ser conhecida como a teoria de justiça pela equidade (melhor tradução do inglês fearless).

Não havendo espaço neste artigo para discorrer sobre toda a metodologia utilizada por Rawls, será suficiente afirmar que ele propõe dois princípios de justiça que necessariamente emergem do estado original sob o véu da ignorância: a liberdade e a igualdade ou equidade. Esses dois princípios irão impor limites ao conteúdo do acordo ou pacto social. Sem eles, o contrato admitirá qualquer tipo de conteúdo ao alvedrio dos contratantes. Os princípios são anteriores ao pacto, semelhante às leis naturais de Locke, e servem para que o pacto seja justo (SANDEL, 2016). O pacto só é legítimo quando seu conteúdo respeite esses dois principios fundamentais. Liberdade e equidade caminham juntas. Todos os indivíduos devem ter a mesma medida de liberdade e as desigualdades só serão admitidas se resultar em maior benefício aos menos privilegiados.

Relacionando as conclusões decorrentes da teoria neocontratualista de Rawls com as manifestações antidemocráticas, problema motivador desta pesquisa, é possível trazer exemplos práticos. Num dos episódios representativos mais emblemáticos, um deputado federal foi preso por defender o retorno do regime autoritário do AI-5, além de trazer ofensas pessoais contra integrantes do Supremo Tribunal Federal. Neste contexto, manifestantes antidemocráticos se revoltaram contra a prisão, argumentando que o deputado estaria respaldado no seu direito de liberdade de expressão e de imunidade parlamentar. Entretanto, submetendo esse episódio ao estado original de equidade fica evidente que nenhum contratante concordaria em aceitar que as ofensas proferidas contra o regime democrático e contra o ministro da Suprema Corte estivessem protegidos pelos princípios da justiça. Ora, basta se colocar no lugar do ministro ofendido para chegar a essa conclusão; ou basta supor o malefício em colocar em cheque o melhor regime de governo. Em outras palavras, a liberdade de um termina quando começa a do outro. Sob o véu da ignorância, ofensas não admissíveis.

Isso fica mais evidente na questão ideológica, quando ninguém no estado original admitiria restringir a liberdade, pois não saberia qual seria a sua ideologia ao sair do estado original. Em temas como família, fica claro que os homens sob o véu da ignorância concordaríam com a proteção da instituição; porém não haveria consenso sobre o conteúdo ou formato da família. Então, por não ser universal, não é um tema que deve constar na pauta do Estado. É explicitamente contra a natureza impor ideologias pelas armas, então não há qualquer legitimidade numa intervenção militar que negue a igualdade e a liberdade de pensamento.

Poderíamos multiplicar os exemplos, contudo por limitação de espaço parece ser claro que, num estado original de equidade, sob o véu da ignorância, nenhum regime autoritário se sustenta legitimamente, pois ideologias não se impõe e ofensas não são aceitas como liberdade de expressão.

As instituições devem servir de exemplo de ações justas de garantia e implementação das liberdades e da igualdade. Caso as instituições sejam injustas surge o contexto para se desenvolver a desobediência civil, ou seja, o ato político não violento que busca mudar o status quo do Estado. Embora a desobediência possa parecer um movimento ameaçador, na verdade é o Estado que se manifesta de forma ilegítima ao manter instituições injustas. Em determinados casos, quando há uma injustiça institucionalizada, a reforma do Estado é algo tão democrático quanto a sua manutenção. Contudo, obviamente, uma desobediência civil que tenha o propósito de se opor àqueles mesmos princípios que justificam a atuação das instituições, a liberdade e a igualdade, temos uma desobediência tão ou mais injusta do que as instituições contra as quais quer se insurgir.



3. CONSIDERAÇÕES FINAIS


Iniciamos a pesquisa com a seguinte pergunta: se a vontade do povo é a própria essência da democracia, como fundamentar a imposição de limites à vontade antidemocrática?

Partindo da teoria contratualista, foi visto que o Estado surge por meio de um acordo de vontades que legitimam a sua atuação soberana. Para os absolutistas, o poder do Estado Soberano se concentra em uma pessoa (exemplo, monarca) ou grupo (exemplo, aristocracias). Já no regime democrático, o poder soberano é de titularidade do povo, que o exerce diretamente (democracia direta) ou por meio de representantes eleitos (democracia representativa). Consoante foi discutido, o modelo democrático é o mais popular no mundo, justamente por ser mais eficiente na garantia dos direitos fundamentais. Mesmo sendo o melhor dos regimes, não é raro que surjam os tiranos para implementar governos autoritários ou totalitários. Tais tiranos obtêm o apoio daqueles que se identificam com a sua pauta, numa espécie de cumplicidade de servidão voluntária.

Embora tirano e cúmplices sejam minoritários, mesmo se fossem a maioria, não teriam legitimidade para impor sua vontade sobre as minorias. Isso ocorre na medida que o próprio conceito de democracia contém em si mesmo a ideia de igualdade, que exige o respeito dessas minorias. Ademais, a teoria contratualista clássica também se pauta, em Locke e Rousseau, nas leis naturais ou numa concepção de vontade geral, que é contrária à qualquer modelo de tirania.

Por fim, e mais importante, a partir desse pano de fundo, a teoria política neocontratualista de John Rawls deixa claro que o pacto social não admite um conteúdo indiscriminado. Ainda que a democracia seja materializada, em essência, na vontade do povo, essa vontade encontra limites em princípios fundamentais que somente podem ser encontrados sob o véu da ignorância em estado original de igualdade. Seria, então, legítimo importar manu militari a ideologia de um grupo sobre uma minoria? A resposta é absolutamente negativa. O limite é a garantia da liberdade e da igualdade, princípios basilares.

É por isso que as manifestações antidemocráticas não possuem validade em si mesmas, ainda que da maioria. Cada uma delas pode ser colocada no “tribunal” de Rawls, estabelecido no estado original. Usar armas para impor ideologia é negar a própria essência da democracia, daí que é uma manifestação invalidade por si só. Nesse estado, sob o véu da ignorância e em condição de equidade há consenso de que ideologia, crença, valores morais não são impostos, sob pena de retirar do indivíduo o que lhe é mais básico: sua liberdade de pensamento.



REFERÊNCIAS


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